Friday, October 06, 2006

Música e Literatura - Post III

Passando diante de um dancing, vem-me embater no ouvi­do, soante, quente e bruta como o fumo da carne crua, uma violenta música de jazz. Detive-me um momento; aquele tipo de música, por muito que a detestasse, sempre exercera sobre mim um secreto fascinio. O jazz repugnava-me, mas preferia-o cem vezes a toda e qualquer música académica da época, com a sua selvajaria jovial e rude; tocava-me, a mim também, bem fundo no mundo dos instintos, exalava uma sensualidade cân­dida e franca.
Durante um momento, ali fiquei de narinas abertas a inspi­rar aquela música sangrenta, estridente, a farejar, enfurecido e lúbrico, a atmosfera daquela sala. Uma parte dessa música, a lí­rica, era piegas, sobre-açucarada e transbordante de sentimen­talismo, a outra, selvagem, caprichosa e vigorosa; no entanto, as duas partes co-existiam natural e pacificamente, e formavam um todo. Era uma música de decadência, na Roma dos últimos imperadores devia ter havido música assim. Claro que, compa­rada com Bach e Mozart e com a verdadeira música, era uma bela porcaria — mas porcaria também era toda a nossa arte, to­do o nosso pensamento, toda a nossa pseudo-civilização, assim nos puséssemos a compará-los com a verdadeira cultura. E esta música tinha a vantagem de uma grande sinceridade, de uma negritude atraente e não falseada, de um humor jovial de crian­ça. Tinha algo do negro e algo do americano, que a nós, euro­peus, se apresenta, em toda a sua pujança, com a frescura da adolescência e a ingenuidade da infância. A Europa tornar-se--ia também assim? Estaria já nesse caminho? Seríamos nós, ve­lhos eruditos e admiradores da Europa antiga, da verdadeira música e da verdadeira poesia de outros tempos, seríamos nós apenas uma minoria reduzida e idiota de complicados neuróti­cos, amanhã esquecidos e escarnecidos? Aquilo a que chamava-mos "cultura", espírito, alma, que apelidávamos de belo e sa­grado, seria mero espectro morto de há muito tempo e real e vi­vo apenas no crer de uns tantos loucos que somos nós? Quem sabe se pura e simplesmente nunca teria sido real nem vivo? Quem sabe se o que nos movia a nós, idiotas, nunca teria passa­do de um fantasma?
em,O Lobo das Estepes, Herman Hesse

3 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Admira-me o rapaz do jazz não ter comentado.
Estou quase a acabar o lobo das estepes, livro estranho esse, principalmente a parte final, e vai de acordo com algumas das coisas que você me disse ontem.

1:33 PM  
Blogger Renato said...

Adoro Herman Hesse. Até ando com medo de o ler e esgotar demasiado depressa a sua obra (neste momento ando a fazer o mesmo com Beethoven, não oiço). Aconselho, muito sinceramente, a leitura do livro.

5:14 AM  
Blogger Unknown said...

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