Tenho estado a ouvir a obra de Arvo Part, que me levou a alguma reflexão sobre o conceito de arte, levou-me a uma melhor compreensão do que é a arte hoje em dia.
Sem dúvida que a arte contemporânea é bastante diversificada nos estilos, nas concepções estéticas que coexistem pacificamente. Essa variedade invalida qualquer generalização que se possa fazer à arte contemporânea. Contudo, tento fazer um breve comentário a nossa arte actual a partir da obra de Part.
Tenho consciência que a arte que nos rodeia é tão variada que se torna praticamente impossível fazer uma síntese. De facto, que semelhança podemos encontrar na música de Part, ou Schnitke? Na obra de Gubaidulina ou Britten? Actualmente, os conceitos de arte, de música, tornaram-se bastante elásticos. Por vezes, temos a sensação de que tudo é válido, tudo é possível, qualquer estilo, qualquer concepção estética. Há espaço para tudo. Sem dúvida que esta situação, única na nossa História, traz grandes vantagens.
No entanto, penso que estas novas linguagens trouxeram um novo fenómeno, que Foresi exprime tão bem em Falando de Filosofia: trata-se da separação entre a técnica e o conteúdo, profundamente ligada à dicotomia entre ser e pensar.
Nas épocas anteriores, apesar da arte exigir muito trabalho, estudo e enorme precisão técnica, nunca se confundiu o conceito de arte com o conceito de artesanato. Ou seja, a arte era conteúdo para além da técnica, para além da linguagem que se utilizava. E esse conteúdo era o essencial. O artesanato era a técnica em si, o domínio de determinada linguagem.
Na missa em Si menor de Bach, por exemplo, tenho reparado, em várias pessoas e amigos, que se interessam mais pela técnica que pela arte. Entusiasmam-se com a complexidade matemática das fugas e com a aritmética do contraponto bem construído, em vez de perceberem a beleza do mistério da Encarnação que é transmitido na música.
Parece-me que o conteúdo perdeu interesse, em detrimento do manejar de uma técnica. Não quero dizer que a técnica não interessa. Não. Penso que é bom o entusiasmo pela complexidade técnica das obras de Bach, mas será que a obra se fica por aí? Será que a técnica era o grande entusiasmo de Bach quando fazia uma Missa? Muito sinceramente parece-me que os aspectos técnicos são os elementos de menor interesse numa obra como a Missa em si menor.
Então, o que mudou na concepção de arte? Penso que quando a arte era muito mais para além da técnica, os artistas tornavam-se muito mais genuínos. Os poetas escreviam poemas, porque respiravam poesia. Os pintores pintavam, porque esse tipo de expressão fazia parte da sua identidade. Não havia outra motivação para além do ser da pessoa. A pessoa pensava o que era, fazia a arte que tinha dentro de si. Mozart compunha, porque a música preenchia todo o seu ser. Ele não podia deixar de compor, era essa a sua vida. O artista criava, não nas horas vagas, não num departamento específico da sua vida em pé de igualdade perante os outros. O artista criava porque vivia constantemente as suas criações. O artista dedicava-se à arte porque a arte era o seu mundo, a sua casa.
Quando a arte se torna numa técnica, as pessoas dedicam-se à arte da mesma maneira que se dedicam a outra tarefa qualquer. Podem fazer música, como podem fazer experiências químicas num laboratório. Basta aprender a técnica. A prova de que isto é verdade, está na opinião de tão ilustres musicólogos, segundo os quais Bach, nas suas obras, fez sobretudo experiências laboratoriais.
No meio do panorama artístico actual, Arvo Part enche-me de esperança. Trata-se de um compositor que, depois de uma longa e intensa preparação técnica, começou por fazer música nas linguagens modernas, serial. Depois, com a conversão ao catolicismo, sentiu necessidade de exprimir a sua experiência religiosa no seu trabalho artístico.
A sua música só podia exprimir a sua vida. A linguagem serial deixou de ser útil porque não era sua, não fazia parte do seu ser. Ou seja, ele é artista, não por dominar a técnica, mas porque a sua arte exprime o que ele vive, as suas vivências pessoais. A técnica que ele criou foi uma necessidade do conteúdo que ele quer exprimir. Part não tem uma vida à parte da arte que produz, como acontece na realização de tarefas meramente técnicas. Procura introduzir um conteúdo na sua arte, um conteúdo que mais não é senão experiência humana, vida concreta. Não são ideias abstractas que em nada nos tocam, que nada transformam. É a fé que mudou a sua vida e a sua compreensão do mundo.
A obra que marca essa viragem é o Credo, composta em 1968. É aqui que começa o desenvolvimento da sua própria linguagem musical, um tonalismo sem tensão, de steady state. De facto, a partir desta data a sua obra liga-se à vida, à sua realidade subjectiva, deixa de ser um conjunto de ideias abstractas que se pensam sem serem parte daquilo que somos. Deixa de ser uma arte distanciado do ser humano.
A música de Part faz-nos reviver um determinado momento, uma vivência pessoal que ele partilha connosco, permitindo-nos experienciar a sua experiência. Sinto que através desta arte vivo o que outra pessoa viveu, sinto os seus sentimentos de busca pelo divino, do sentido da vida, de comunhão com o absoluto e a paz que brota daí. Com a música de Part vejo e compreendo a sua Fé, a sua vida.
Vale a pena ouvir este Credo, e as obras do estilo tininnabuli da sua última fase, iniciada em 1976 com o estudo da música medieval. Um bom exemplo desta expressão artística é a obra De Profundis, cuja letra é o Salmo 129/ 130. Esta peça faz-nos sentir o desejo de nos encontrarmos ou reencontrarmos com Deus, nas situações de maior angústia, naqueles momentos em que nos sentimos perdidos: «Do profundo abismo eu grito a Ti, Senhor/ Aguardo o Senhor esperando a Sua Palavra/ a misericórdia é do Senhor/ Ele redimirá…». Algo que Part certamente já sentiu…