Pequena meditação sobre o Miserere
Creio que quem ler este salmo, saboreando cada versículo, cada palavra, sairá da sua finitude para sentir um pouco da eternidade que há em Deus.
A versão musical mais conhecida do texto bíblico é a de Gregório Allegri, escrita no século XVII. Esta obra será ouvida e apreciada para sempre, pelo menos enquanto existirem loucos que desejam a pureza de coração. Aquela pureza que permite ver Deus. Só esses podem compreender a súplica: «Criai em mim, oh Deus, um coração puro!».
Este é o coração da eternidade. Todo o Miserere de Allegri parece não seguir um caminho, um rumo. Não chega a uma meta, nem está no tempo que passa. Apenas permanece como um todo, indiciando o que é a eternidade, mostrando-nos o que significa estar in saecula seculorum.
Os intervalos utilizados são sempre muito puros, quintas e quartas que se destacam num contraponto simples e numa harmonia perfeitamente consoante. Tudo isto está delineado para que o ouvinte possa sentir a pureza, a pureza que há no Homem. Oh melhor: a pureza que o Homem deseja ter.
O salmista tem este desejo, não a partir de uma reflexão filosófica, mas a partir da sua própria vida. É olhando para ela que se reconhece como pecador. Percebe que desperdiçou muito do tempo que lhe foi dado. Sente que o seu passado não tem sentido, porque o único sentido que existe é Deus, o Amor que ele não amou.
Contudo, é a sinceridade com que descreve esse sentimento, a genuinidade com que deseja ser purificado por Deus, que o leva para a pureza do seu coração. É no mais fundo de si que ele encontra Deus, o sentido e a paz que a música transmite.
Sentindo-se pecador, começa a sentir-se perdoado e amado. Sente-se amado e não sabe como responder a esse amor. Só deseja amá-Lo da mesma maneira. E é amando-O que descobre a força do amor recebido: «Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito humilhado e contrito».
Recentemente tive a oportunidade de ouvir uma versão deste salmo mais recente: o Miserere de Arvo Part, composto em 1989, na óptima gravação da ECM.
Tal como a obra de Allegri, aqui continuamos a saborear estes momentos de eternidade que alimentam a nossa fé. Momentos onde não se encontra a presença do tempo, do tempo que passa, pois tudo permanece numa dinâmica misteriosamente estática e unificadora.
Contudo, em termos musicais, o drama da existência humana torna-se mais explícito. Não seria esta a obra de um convertido…
Logo o início está cheio de mistério, de busca desesperada, no meio de pianíssimos, onde quase não dá para distinguir os instrumentos das vozes. Os sopros, confundindo-se com as vozes humanas, retiram-se e aparecem subtilmente.
Tudo isto nos mostra o despertar do Homem para a Existência. O Homem que fica profundamente admirado por existir. E, depois, começa a procurar onde realmente existe.
Depois de não se sentir saciado com a sua própria existência, começa a relacionar-se com outras existências, cuja finitude também não o saciam.
Nasce, então, o desejo ardente de encontrar a fonte das existências: quer conhecer o Existente. Só assim poderá libertar-se do vazio da sua vida sem sentido. Da vida que o afastou dessa existência eterna, cheia e plena. Descobre que só esta poderá encher o seu coração.
Sente-se pequeno, frágil, incapaz de viver plenamente, incapaz de repor o sentido já perdido. Mas é precisamente do reconhecimento dessa pequenez, dessa humildade, que nasce a flor da pureza. Quando se reconhece incapaz, deixa de estar fechado no seu mundozinho e abre-se à Misericórdia abundante que a eternidade tem para lhe oferecer. Deixa-se invadir por ela, não para ser perdoado mas para perdoar, não para ser amado mas para amar. Amar toda a humanidade que há em si. Este é o homem que diz:
«Misericórdia, meu Deus, por tua bondade,
por tua imensa compaixão apaga minha culpa;
lava todo o meu delito,
limpa o meu pecado.
Pois eu reconheço minha culpa,
tenho sempre presente o meu pecado:
contra ti, contra ti somente pequei,
cometi a maldade que te entristece.
Gostas de um coração sincero,
e em meu interior me ensinas a sabedoria.
Purifica-me com o hissope e ficarei limpo;
lava-me e ficarei mais branco que a neve.
Faz-me ouvir o júbilo e a alegria,
que se alegrem os ossos quebrantados.
Afasta de meu pecado a tua vista,
apaga em mim toda culpa.
Oh Deus, cria em mim um coração puro,
renova-me por dentro com espírito firme;
não me afastes para longe da tua face,
não me tires o teu santo espírito.
Devolve-me a alegria da tua salvação,
sustém-me com espírito generoso:
ensinarei aos transgressores os teus caminhos,
e os pecadores voltarão a ti.
Livra-me do sangue, oh Deus,
Deus, Salvador meu,
e minha língua cantará tua justiça.
Senhor, abre meus lábios,
e minha boca proclame o teu louvor.
Os sacrifícios não te satisfazem
e, se ofereço holocaustos, não os aceitas.
Sacrifício agradável a Deus
é um espírito humilhado e contrito;
um coração quebrantado,
Deus não desprezará»