O Fonógrafo é um blog sobre música. Desde o primeiro post não fugi a este tema, mesmo que a tentação tenha sido por vezes muito alta... Quanto à questão do aborto julgo no entanto ser legítimo abrir a exepção, sinto-me mesmo moralmente compelido a fazê-lo. Não tentarei expôr por completo os meus argumentos sobre esta matéria, não tenho também a presunção de alegar que direi algo novo, nem é meu intuito convencer ninguém. Porém, neste referendo somos convidados a participar em algo absolutamente decisivo, para o qual devemos todos contribuir activamente. Esta será a minha maneira de o fazer. Para que se saiba à partida: voto não.
Quando discutimos a liberalização do aborto dois valores fundamentais entram em conflito: o da auto-determinação da mulher sobre o seu corpo e o do direito à vida de cada Homem. Todo o argumentário à volta de outras questões é inútil ou, na pior das hipóteses, desonesto.
Porém, antes de o consideramos, permitam-me ainda argumentar que estamos quase todos de acordo sobre o essencial: o primado do direito à vida sobre o do direito do homem ou da mulher sobre o seu corpo. A discussão apenas faz sentido caso as partes dialogantes acordem quanto a isto. Numa hierarquia de valores onde o direito da liberdade de escolha está acima do respeito pela vida do outro não existem quaisquer dúvidas: o aborto é um atentado à mulher e deverá ser liberalizado sem qualquer tipo de constrangimentos ou restricções. É assustador mas, é esta a posição coerente.
Uma vez aceite o primado do direito à vida, podemos então passar à discussão que nos é proposta pelo referendo do dia 11 de Fevereiro, levantando a dúvida que naturalmente se impõe: existe, de facto, um conflito entre estes valores? Existe, afinal, vida no ser que se desenvolve no ventre da mulher? Sejamos claros quanto a isto: existe. E não sou eu que o afirmo, caso fosse, concederia todo o espaço para que a afirmação fosse colocada em causa... Mesmo entre os partidários da liberalização já não é possível questionar um facto que é hoje evidente. Assim sendo, a única abordagem possível que permite ainda legitimar a interrupção da gravidez, consiste em defender que se tratando de vida humana, a vida intra-uterina não constitui ainda uma pessoa plena. É neste contexto, e apenas neste contexo, que surge a discussão à volta da determinação das 10 semanas.
Pode parecer absurdo mas, é de facto isto o que acontece. Discutem-se os critérios que determinam o que torna um ser humano numa pessoa plena de direitos. É aqui que se faz o primeiro ataque a um caminho que há muito tem sido percorrido pela Humanidade: o esforço do reconhecimento do carácter absoluto do direito à vida, independente da vontade e definição de outros, independente da determinação das maiorias. É este o fundamento basilar do convívio entre Homens, constituinte primeiro da sua própria condição.
Do debate sobre a determinação do número de semanas não surge qualquer conclusão (veja-se, a título de exemplo, a disparidade no estabelecimento deste prazo entre os diversos países europeus), as propostas são as mais variadas, cai-se no campo da total arbitrariedade. Reflexo disso mesmo é o reconhecimento, por parte dos defensores do sim, do absurdo em que consiste a definição concreta desse prazo. Desta forma, para que possam continuar a defesa da liberalização do aborto, torna-se necessário prescindir deste debate, fugindo da questão essencial que o encerra. Uma vez que não é possível a determinação objectiva do início da vida, argumenta-se apenas sobre a necessidade maior da determinação de um número de semanas que permita à mulher abortar, "decidir em consciência", independentemente da existência ou não de vida no ventre materno. Infelizmente morrem aqui as hipóteses de uma discussão séria sobre esta questão. O que quem defende essa necessidade não consegue, ou não quer conceber, é que a vida não é um conceito livremente estabelecido pelo Homem, que não se torna moralmente legítimo matar alguém pela necessidade do estabelecimento deste consenso. Se a vida existe, em absoluto, às 9, 8, 7, 5 semanas, não é uma lei que define um prazo de 10 que lhe confere qualquer tipo de legitimidade moral.
Por outro lado, existe ainda um pequeno reduto entre os defensores do sim que se atreve a discutir a questão do início da vida. Será curioso notar uma marcante contradição no seu discurso. Entre estes, as 10 semanas são habitualmente apresentadas como um prazo “recuado”, “moderado”. No entanto, admitindo que assim é, se a vida começa algures depois das 10 semanas, é necessário reconhecer que levar a tribunal uma mulher que aborta às 11 constitui uma injustiça tão profunda quanto a que existe com a lei actual. Contudo, mais grave, é a incapacidade para compreender a arbitrariedade da afirmação “recuado”, a incapacidade para perceber que a determinação da vida de cada Homem não pode depender do estabelecimento de critérios subjectivos, mesmo que sejam aprovados por maioria, mesmo que seja esse o consenso social à volta desta questão.
É inquestionável que para a maioria das mulheres o aborto é um drama profundo, que o sofrimento de muitas dessas mulheres levanta os mais sinceros sentimentos de solidariedade. A pergunta do próximo dia 11 interpela-nos, porém, para a despenalização de um comportamento que resulta na morte de um ser humano, único, irrepetível. Aqui a minha resposta não pode ser outra: voto não.